quinta-feira, 27 de setembro de 2012

A vida e o homem


Medíocre são as recordações
Presentes da idade
Extrato da destilação do tempo
Que feito faca, corta
Penetra cada centímetro de segundos
Assim devasta a vida
Provoca dor e nos presenteia a cicatriz, que é um epitáfio
Lembranças, mediocridades
Migalhas da vida.

Se a vida é um pão de trigo
Se é o alimento do banquete sagrado
A nós sobrou apenas o rastro do tempo
Migalhas, ainda que se comam todas
Pois não se come a vida inteira
A qual é cuspida no parto
E se espalha feito bolhas de sabão
Divide-se e é sentida a tics e tacs
Letras, segundos, notas, unidades.

Ah! Vida, como és sem graça
E a overdose mata
Só nos sobra à verdade
O pão inteiro
Que não se dá em migalhas
A verdade, tudo e nada mais
Presente de Deus
Sovado pelo homem. 

Deus duplo


Que Deus duplo nos pôs na alma sensível
Ao mesmo tempo os dons de conhecer
Que o mal é a norma, o natural possível,
E de querer o bem, inútil nível,
Que nunca assenta regular no ser?

Com que fria esquadria e vão compasso
Que invisível Geómetra regrou
As marés deste mar de mau sargaço 
O mundo fluido, com seu tempo e espaço,
Que ele mesmo não sabe quem criou?

Mas, seja como for, nesta descida
De Deus ao ser, o mal teve alma e azo;
E o Bem, justiça espiritual da vida,
É perdida palavra, substituída
Por bens obscuros, fórmulas do acaso.

Que plano extinto, antes de conseguido,
Ficou só mundo, norma e desmazelo?
Mundo imperfeito, porque foi erguido?
Como acabá-lo, templo inconcluído,
Se nos falta o segredo com que erguê-lo?

O mundo é Deus que é morto, e a alma aquele
Que, esse Deus exumado, reflectiu
A morte e a exumação que houveram dele.
Mas está perdido o selo com que sele
Seu pacto com o vivo que caiu.

Por isso, em sombra e natural desgraça,
Tem que buscar aquilo que perdeu 
Não ela, mas a morte que a repassa,
E vem achar no Verbo a fé e a graça 
A nova vida do que já morreu.

Porque o Verbo é quem Deus era primeiro,
Antes que a morte, que o tornou o mundo,
Corrompesse de mal o mundo inteiro:
E assim no Verbo, que é o Deus terceiro,
A alma volve ao Bem que é o seu fundo.

Fernando Pessoa

quinta-feira, 13 de setembro de 2012

Desencanto


Enquanto o encanto desencanta
A flor murcha sem parecer sentir dor
Flagelada ao cair da planta
Não ouço seu grito
Não vejo sua cor

Enquanto o encanto desencanta
castelos encantados criados vão ao chão
Promessas já não mais acredito
Sonhos sonhados em vão

Desencanto de quem quis tornar real o irreal
de quem ousou acreditar que
poderia com o amor mundo mudar

Depois do desencanto
nada mais será como antes
Por que fui acreditar?
Por que me deixei enganar?
Depois do desencanto
não há como te reinventar.